sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Ciências – Texto 16

É ruim ser criança

Cabelo escorrido, magrinha, pele morena, roupas puídas e sandálias de borracha, Ionara Oliveira Alves, 11 anos, vive do lixo do Janguruçu, em Fortaleza.
Metade das mil pessoas que aqui trabalham são mulheres, adolescentes e crianças.
Janguruçu fica a 10 quilômetros da cidade. O aterro recebe 3 000 toneladas de lixo residencial, hospitalar e entulhos por dia. (...)
Ionara se matriculou na escola, por isso só vai para a rampa aos sábados e domingos. Procura brinquedos, mas cata “outras coisinhas”. Com isso, ajuda nas despesas com a alimentação. São nove pessoas em casa. (...) A renda dessa família chega no máximo a um salário mínimo por mês.
Logo na entrada, perto das balanças, a sensação é angustiante. Nuvens de moscas colam na pele, o calor é insuportável, misturado aos gases da fermentação do lixo e do chorume, que escorre pelos barrancos para o rio Cocó. O mau cheiro sufoca. Há restos de tudo, inclusive seringas, agulhas e frascos de soro. (...)
Centenas de catadores se atiram sobre o lixo, assim que cada veículo [caminhão] chega. Roupas sujas em frangalhos, calçam sapatos díspares encontrados no meio dos “bagulhos” e cobrem a cabeça com camisetas e trapos. Disputam o entulho (...) num trabalho contínuo de vasculha-acha-separa-amontoa-carrega.
A briga é desigual: os homens são mais agressivos e pegam maior quantidade de materiais. As crianças acabam ficando na retaguarda, esperando que sobre alguma coisa para amontoar e vender aos “deposeiros”.

Acidentes acontecem diariamente e, é claro, não há assistência alguma. Ionara vai narrando:
“É
muito ruim ser criança”. Ela se sai mal quando o caminhão chega. (...) “Porque tem muita gente abestada mesmo, que não pode ver a gente pegar uma lata, que pode até matar por isso. (...) As crianças catam com a mão, com paus. Perigoso. Uma amiga minha não viu um caco e cortou a mão. Depois tem esse movimento de caminhão, trator, tudo em cima, muito perigoso. Um menino morreu atropelado; e uma mulher, buchuda, o trator passou em cima”.
Os catadores fazem as refeições no meio da sujeira, com milhares de moscas e outros insetos em volta.
Normalmente, levam marmita e água de casa, para não se sujeitar ao preço dos barraqueiros. Alguns, na ânsia de garantir mais produção, trabalham à noite, iluminados por lamparinas de querosene, feitas com latas velhas e trapos.

“Tem criança virando a noite. Eu já trabalhei de noite. Mas é muito ruim, não dá pra dormir nada de madrugada. A gente se ajeita em cima de um papelão, perto dos fardos. Mas pode pegar um fuscão: tem uns meninos que jogam aquele pó preto que vem no lixo, ou então pó de pneu queimado. A gente amanhece preta dos pés à cabeça. Já aconteceu comigo.
Se quiser dormir um pouquinho, tem de botar papelão em cima”.
Os catadores não têm condições de pensar no futuro.

Ionara resume:
“Quando eu vinha aqui todo dia, pensava: vou dormir. Dormia, acordava, estava a mesma coisa. Quando brinco com os brinquedos que acho por aqui, eu finjo que sou dona de casa e que minha amiga também tem uma casa. Eu sonho”.
(Extraído de Huzak & Azevedo, Crianças de fibra, 2000, p.80-5)

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